A Multidão no afresco "A punição de Corá, Datã e Abirão", de Botticelli na Capela Sistina

A passagem bíblica de Números, capítulo 16, verso 3 nos apresenta uma incógnita sobre o lugar da multidão na cultura hebraica durante a longa caminhada entre o cativeiro egípcio e Canaã, a Terra Prometida por Deus a esse povo. Em certo momento, três homens, um levita e dois rubenitas, acompanhados de 250 “príncipes da congregação” se voltam a Moisés, questionando a posição de liderança assumida por ele e Arão sobre os demais israelitas, pois que o Senhor está no meio da “congregação”, “toda a multidão é santa”. Moisés instrui aos revoltosos que tomem seus incensários e, junto com Arão, o sacerdote, ofereçam incenso a Deus, e assim se conheceria o Seu eleito. Como conseqüência, as famílias de Corá, Datã e Abirão foram tragadas pela terra, numa grande fenda que se abriu sob seus pés e suas casas. Os 250 príncipes foram consumidos por um fogo da parte de Deus.


 Há duas pinturas conhecidas que representam esse evento. Uma esteve na Catedral de Camposanto, em Pisa, Itália, e foi realizada em afresco pelo artista Benozzo Gozzoli. Infelizmente não temos acesso a imagens desse afresco, destruído na Segunda Guerra Mundial. Assim, esse trabalho se dobrará sobre o afresco de Botticelli, realizado na Capela Sistina, entre os anos de 1481 e 1482, sob o Papa Sisto IV.

Utilizaremos a Vulgata de São Jerônimo e a versão Ferreira de Almeida Revisada e Fiel da Bíblia como fontes primárias escritas e o próprio afresco de Botticelli como fonte de análise iconográfica. Teremos como questionamento e estímulo a multidão nesse contexto, seu comportamento e representação no dito afresco de Botticelli na Capela Sistina.

As possíveis multidões de Números 16

O livro bíblico de Números é parte do Pentateuco, que narra a história dos hebreus, o povo eleito por Deus para ser Seu, desde a saída do Egito até sua constituição enquanto nação. Ele está organizado em duas temáticas: narrativas sobre os acontecimentos no deserto, entre o êxodo e a chegada a Canaã, a terra prometida, e as leis que regeriam esse povo[1]. Em diversos trechos dos livros de Genesis e Êxodo aparece a promessa de Deus de prosperar os filhos de Abraão, fazer de sua descendência uma grande nação, incontável como as estrelas do céu ou as areias do mar (Gn 22:17). Abraão gerou Isaac, que gerou Jacó, mais tarde chamado Israel, e dele vieram doze filhos, os quais se multiplicaram sob o cativeiro egípcio, de maneira que os israelitas se tornaram milhares. Moisés, então, livrou esse povo e os conduziu pelo deserto a Canaã. A viagem durou 40 anos e pelo longo trajeto Deus determinou as leis e regulamentos que regeriam e identificariam Seu povo, desde interditos alimentares até as liturgias para ofertas de comunhão[2]. Esse foi o período da constituição dos israelitas como povo de Deus, processo longo de aprendizagem, purificação, criação de cultura e identidade.

Mas o primeiro propósito do livro de Números foi recensear o povo e contar quantos homens seriam capazes de empunhar armas. Não foram contabilizados nesse momento os da tribo de Levi, que tinham como função os cuidados do tabernáculo, a tenda onde o se materializava a presença de Deus, em nuvens ou em fogo, e onde aconteciam muitos dos rituais. O sumo-sacerdote Arão, irmão de Moisés, era da tribo de Levi, e sua descendência direta desempenharia essa mesma função. Há que se observar que o recenseamento é finalizado ainda no primeiro capítulo do livro, e que os demais 35 capítulos não atenderiam ao propósito da obra, se realizarmos uma leitura linear e superficial.

A antropóloga Mary Douglas fez um trabalho detalhado e minucioso de leitura atenta do livro, propondo novos caminhos interpretativos e mesmo apresentando-o de uma maneira diferente. As análises anteriores apresentavam Números como uma obra desconexa, sem organização e carente de estilo. Douglas demonstra o contrário, afirmando inclusive que o livro provavelmente foi apresentado na mais elegante forma literária de seus dias[3]. O calendário de festas israelitas descrito em Levítico ofereceu a Douglas arcabouço para ler Números de maneira estrutural, localizando no sacrifício o clímax do tempo cíclico, ritual. Assim, a passagem que nos interessa deve ser observada também dentro da narrativa. A antropóloga dispõe as seções do livro de maneira simétrica, opondo os capítulos de 1 a 4 aos capítulos 16 e 17, como vértices.

O início do livro fala sobre a ordem de Deus para o recenseamento, o número de homens a cima de 20 anos em cada tribo, a configuração geográfica das tribos, tanto para marchar quanto para acampar, as responsabilidades e o número dos levitas e dos filhos de Arão. Depois disso, a narrativa diz que os utensílios do tabernáculo foram ungidos e o povo começou a marchar. O outro vértice na análise de Mary Douglas é o episódio em que Corá, um levita, questiona Moisés a respeito de sua posição sobre o povo, posto que “toda a multidão é santa”. Com isso, o vértice do livro está justamente no episódio de Corá, Datã e Abirão, encerrando e reiniciando um novo momento na narrativa, bem como as festas e sacrifícios marcam a passagem do tempo no calendário hebraico.

O capítulo 16 começa com Corá, Datã e Abirão (estes últimos rubenitas), acompanhados por 250 príncipes do povo, se aproximando de Moisés para questioná-lo. Corá se apresenta como porta-voz e diz a Moisés: “Basta! Toda a assembléia é santa, todos o são, e o Senhor está no meio deles. Por que vos colocais a cima da assembléia do Senhor?” (SUFFICIAT VOBIS QUIA OMNIS MULTITUDO SANCTORUM EST ET IN IPSIS EST DOMINUS CUR ELEVAMINI SUPER POPULUM DOMINI). O Novo comentário da Bíblia[4] observa que Corá era um levita, como dito, e a sua reivindicação era dirigida ao sacerdócio de Arão, cuja família foi eleita para levar a função espiritual na liderança do povo, enquanto sacerdotes. Já Datã e Abirão, filhos de Ruben, o primogênito de Israel, questionavam a autoridade civil e política de Moisés, que tradicionalmente deveriam repousar sobre a descendência do filho mais velho de Jacó. Mas qualquer que fossem suas motivações, o argumento foi o mesmo, a santidade da multidão.

A noção de “santo” está ligada à de separado, protegido do alcance dos homens[5]. Os levitas foram separados por Deus para o serviço do tabernáculo e assim aproximados dEle antes de todas as outras tribos de Israel (Nm 3:12). Assim, dificilmente o questionamento de Corá, destacando a santidade como argumento, estava circunscrito ao acesso às coisas de Deus, pois que ele mesmo era levita, apesar de não ser sacerdote. Mas seus companheiros não tinham livre acesso ao Tabernáculo enquanto espaço consagrado. Corá pode então ter pretendido expandir seu próprio privilégio a todo o povo, reivindicando a santificação de todo primogênito israelita, como dito por Deus no início do livro (Nm 3:13). Dessa forma, todos os indivíduos se fazem santos e a multidão aparece com uma conotação positiva, posto que toda ela fosse santa. Mas a postura inquisitiva de Corá e os seus também pode ser vista como uma atitude singular e individual, em interesses próprios, não coletiva, e tomar a multidão como argumento pode pretender apenas legitimar sua reivindicação.
Apesar de a multidão aparecer na fala de Corá logo nos primeiros versos do capítulo 16, ela só tem voz própria mais adiante, quando busca se afastar da fenda na terra que engolia as famílias de Corá, Abirão e Datã, e no dia seguinte, para murmurar contra Moisés devido à morte dos principais. Até esse momento, não conhecemos o que pensa a multidão, o povo israelita; se a multidão existe quando toma corpo físico[6], quando se congrega num propósito, a multidão a que se refere Corá não é a dos israelitas, mas a dos 250 príncipes que o acompanhavam.

Diante da elevação desses homens, Moisés afirmou que no dia seguinte o Senhor faria conhecer quem eram os dEle, e os faria aproximar de si (MANE INQUIT NOTUM FACIET DOMINUS QUIA AD SE PERTINAT ET SANCTOS ADPICABIT SIBI ETQUOS ELEGERIT ADPROPINQUABUNT EI). Em seguida, questionou Corá sobre suas intenções: acaso não bastava que o Deus de Israel o tivesse separado do povo (SEPARAVITI VOS AB OMNI POPULO), e trazido para junto de si (IUNXIT SIBI)? Mas Datã e Abirão se negaram a ouvir Moisés; queixaram-se sobre o êxodo do Egito para morrer num deserto, sem alcançar as prometidas possessões territoriais, que manassem leite e mel. Eles também acusaram Moisés de se querer senhor sobre o povo e não foram ouvi-lo. A diferença de postura desses três personagens diante de Moisés denota a divergência no interesse de uns e outros quanto à liderança do povo. Datã e Abirão não mais reconheciam no patriarca a autoridade conferida a ele divinamente.


Então, segundo as instruções de Moisés para que se descobrisse quem eram os eleitos do Senhor, Corá, Datã, Abirão, Arão e os 250 príncipes se colocaram diante do tabernáculo, com seus turíbulos, e deitaram sobre eles incenso. Em seguida, a glória do Senhor apareceu a todos (ET COACERVASSENT ADVERSUM EOS OMNEM MULTITUDINEM AD OSTIUM TABERNACULI APPARUIT CUNCTIS GLORIA DEI). Novamente nos deparamos com a palavra MULTITUDO nesse capítulo. Aqui ainda nos resta a questão: quem era essa multidão? Era todo o povo de Israel ou apenas os principais da congregação?


Então Deus ordenou que Moisés e Arão se afastassem do meio da congregação (SEPARAMINI DE MEDIO CONGREGATIONIS), pois seria toda ela consumida; mas diante disso, os líderes afirmaram que um só homem havia pecado, não toda a congregação. Então, instruído por Deus, Moisés disse a todo o povo (UNIVERSO POPULO) que se afastasse das tendas de Datã, Abirão e Corá, para que não perecessem em seu pecado.

A narrativa conta que Moisés profetizou: se eles morressem como todos os homens, então o Senhor não havia enviado Moisés, mas se algo novo fosse criado pelo Senhor e a terra levasse aqueles homens vivos até a sepultura, então conheceriam que aqueles homens desprezaram o Senhor. Aqui o motivo da morte não é o pecado, mas o desprezo a Deus, o questionamento e a oposição à Sua decisão sobre os líderes de Seu povo (BLAPHEMAVERINT DOMINUM). A terra se abriu e tragou aos três, suas famílias e bens.

Corá era levita, e por isso não era estranho ao tabernáculo em algumas tarefas. Mas os 250 príncipes não tinham acesso ao incenso diante da presença de Deus. A morte daqueles que fossem estranhos ao tabernáculo já estava prevista em Nm 1:51, no primeiro vértice do livro. Assim, podemos concluir que a morte dos 253 não foi uma punição divina ou uma vingança de Moisés. O convite do patriarca à oferenda de incenso não era uma provocação, na expectativa da reação de Deus, mas uma prova, posto que aqueles que fossem estranhos ao Tabernáculo e se apropriassem de seu serviço seriam mortos. Assim, a escolha dos rebeldes de oferecer o incenso era consciente quanto às potenciais conseqüências. Mais adiante na narrativa, descobrimos que todos os príncipes foram consumidos por um fogo que veio da parte do Senhor. Os 250 carregavam turíbulos com incenso quando isso aconteceu. Depois que o fogo se dissipou, os turíbulos foram recolhidos e feitos em lâminas para recobrir o altar. Eles eram consagrados e não poderiam ser utilizados em outro lugar que não na presença de Deus; serviriam de memorial para que ninguém tentasse se apropriar do sacerdócio.

Pouco depois, o povo murmurou contra Moisés e sobre todos se abateu uma praga, afastada quando Arão ofereceu incenso e fez expiação pelo povo. Para enfim ratificar a escolha dos líderes, no capítulo seguinte, Deus ordenou que um representante de cada tribo apresentasse diante do tabernáculo uma vara com seu nome escrito. Arão seria o representante da tribo de Levi e a vara que florescesse indicaria aquele escolhido do Senhor. No dia seguinte, a vara de Arão havia florescido, tinha brotos e frutos. Ela também foi posta por memorial aos filhos de Israel para que não se rebelassem contra os homens cuja autoridade foi dada por Deus. Assim, acabaram as murmurações, por hora e a respeito disso, e o povo voltou a marchar. A narrativa continua apenas no capítulo 20 e nos conta uma nova queixa do povo hebreu a seus líderes, mas sem questioná-los novamente enquanto escolhidos.

Observamos, então, que a multidão a que se refere a passagem pode ser o povo hebreu, e assim todo ele seria santo porque separado do Egito e dos outros povos; mas a multidão também pode ser os 250 príncipes, acrescidos de Corá, Datã e Abirão, reivindicando o suposto direito ao sacerdócio e à liderança política do povo. Cabe-nos, portanto, olhar para o afresco de Botticelli tendo em vista essas possibilidades e potências da multidão, tanto no texto bíblico quanto na iconografia do afresco, e talvez outras potências que ainda apareçam com a observação da obra.


O episódio de Números 16 no afresco de Botticelli

A Capela Sistina está dentro do Palácio Apostólico, no Vaticano, e carrega esse nome em homenagem ao Papa Sisto IV, que a restaurou no século XV. Memoráveis obras decoram a Capela, cujo maior destaque é dado a Michelangelo, com a pintura do teto e do Juízo Final, atrás do altar. As paredes laterais são adornadas com afrescos de diversos artistas do Renascimento italiano, dentre eles Perugino, Ghirlandaio, Botticelli e Rosselli. As pinturas estão organizadas em dois ciclos, um sobre a vida de Moisés e outro sobre a de Cristo. Entre as cenas há sempre algum paralelismo de sentido, construindo ensinamentos a serem transmitidos aos observadores das obras[1].

O afresco Moisés a caminho do Egito e a circuncisão de seus filhos (Pinturicchio) está posicionado em frente a O batismo de Jesus (Pinturicchio); ambos são cenas dos primeiros passos de Cristo e de Moisés em seus feitos na Terra. A tentação de Cristo e a purificação do leproso (Botticelli) corresponde a Cenas da vida de Moisés (Botticelli). Nesse ultimo afresco Moisés aparece matando um egípcio, fugindo, tirando água do poço para as filhas de Jetro quando conheceu Zípora, sua esposa, retirando suas sandálias diante da sarça ardente, da qual Deus o chamou para sua missão, e enfim liderando o povo para fora do Egito. Todas as cenas marcam os primeiros eventos ministeriais e a opção por seguir a Deus e cumprir seu propósito, tanto em Moisés como em Cristo. Depois encontramos Passagem do Mar Vermelho (Rosselli) e Vocação dos Apóstolos (Ghirlandaio), uma passagem de iniciação e inauguração de nova fase na vida dos dois personagens. Em seguida, Moisés no Monte Sinai e a adoração do bezerro de ouro (Rosselli) e Sermão da Montanha (Rosselli), cenas que se relacionam à proposição de leis e ordenações para a regência da vida dos filhos de Deus. Depois, A punição de Corá, Datã e Abirão (Botticelli) e A entrega das chaves a São Pedro (Perugino). Os últimos afrescos são A morte de Moisés (Signorelli) e A última ceia (Rosselli).

Tendo em vista a composição de toda a Capela e o cunho educativo e catequético que a pintura teve, mais marcadamente até o século XVI, cabe olhar para o afresco em questão considerando seu posicionamento, localização, mas também as influências e construção do estilo de Botticelli. No afresco, vemos apenas três cenas da longa e detalhada história de Números 16: o levante da multidão, a oferta de incenso, a terra se abrindo e consumindo os rebeldes. Por que a escolha desses três momentos? E por que o centro da imagem é ocupado pela oferta de incenso diante do altar e do Arco de Constantino,e não do Tabernáculo, como narra a bíblia?

Para Alberto Busignani, as pinturas de Botticelli refletiam o espírito florentino do Quattrocento melhor do que qualquer outro trabalho contemporâneo[2]. Sandro Botticelli nasceu em 1445, e passou a freqüentar o atelier de Filipo Lippi pouco depois de 1458[3]. Outras informações sobre sua vida são relacionadas à realização de obras de arte e marcadas por seus trabalhos e relacionamentos, até sua morte, em 1510. Sabemos que em junho de 1481, o Papa Sitos IV encomendou a decoração da Capela Sistina a artistas da Úmbria e de Florença[4], dentre eles Botticelli, que permaneceu em Roma até 1482.

Há, portanto dois painéis do ciclo de Moisés realizados por Botticelli nesse período em Roma, embora haja seis painéis nesse ciclo. Os três primeiros representam Moisés ainda com cabelos escuros e aparência juvenil, apesar de a diferença no desenho de cada artista ser notória. O mesmo ocorre nos outros três afresco, com a imagem de Moisés envelhecido. Mas em todo o ciclo ele aparece com uma vestimenta amarela, coberto ainda por uma estola verde. O amarelo, bastante intenso, pode se referir à cor dourada que adorna as vestes sacerdotais na Igreja Católica; e o verde, relacionado à esperança, também adorna as roupas de Cristo nos afrescos da Capela.

A figura de Moisés está nas três cenas de nosso afresco, cuja leitura deve ser realizada da direita para a esquerda e depois centro. Na primeira cena, um grupo de 14 homens se aglomera ao redor de Moisés. Eles estão armados com pedras e alguns carregam expressões bastante severas. Um homem impede que essa pequena multidão agrida o patriarca, colocando-se entre os revoltosos e Moisés. A expressão deste está repleta de desgosto e ele eleva a mão direita sobre a cabeça, em sinal de repreensão, maldição, clamor a Deus ou defesa.

A mesma posição parece se repetir quando Moisés, à esquerda do afresco, observa a terra se abrir e engolir dois dos inquisidores de sua autoridade. Há ainda dois anjos, um com a mão elevada e outro em posição de interseção, que observam a queda. Duas figuras se colocam à parte; estão presentes, mas aparentemente deslocadas da cena. Horne considera esses personagens filhos de Arão, que partilhariam do sacerdócio com o pai[5]. Um dos que são consumidos pelo abismo traja roupas nas mesmas cores que Moisés, talvez demonstrando a intenção de se apropriar do sacerdócio ou da liderança do povo. Talvez interessado na condição de santo, separado.

No centro do afresco, há seis homens ao redor do altar sacrificial, além de Moisés e Arão. Eles carregam seus turíbulos, mas o único que consegue realizar a oferta de incenso é Arão, com suas vestes sacerdotais e sua mitra, semelhante à usada pelos papas, ainda hoje. Os demais estão prostrados, com o rosto coberto, espantados ou em movimentos de repulsão do altar. Para Horne, essa cena traz o momento em que os príncipes que acompanhavam Corá são consumidos pelo fogo que vem da parte de Deus[6].

Não há na pintura qualquer referência ao Tabernáculo, a não ser o altar. As três cenas acontecem diante do Arco de Constantino, também presente no afresco de Perugino, A entrega das chaves a São Pedro. O Arco foi construído em 312 pelo imperador Romano Constantino, tido como o primeiro imperador católico, em comemoração à vitória na Batalha da Ponte Mílvio. Tal feito é atribuído, nas inscrições do Arco, à grande inteligência do Imperador e à inspiração divina. No afresco de Botticelli, as inscrições do Arco são NEMO SIBI ASSVMMAT HONOREM NISI VOCATVS ADEO TANQVAM ARON, parafraseando o quarto versículo do capítulo 5 da carta aos Hebreus. A Vulgata de São Jerônimo traz esse verso NEC QUISQUAMSUMIT SIBI HONOREM SED QUI VOCATUR A DEO TANQUAM AARON, que pode ser traduzido como “E ninguém tome para si esta honra, senão o que é chamado por Deus, como Arão”.

Destacamos alguns elementos, como as cores das vestes de Moisés, a mitra de Arão, o Arco Triunfal construído pelo primeiro Imperador Romano Católico e as letras das sagradas escrituras em advertência sobre a usurpação do sacerdócio. Além dos elementos internos do afresco, consideremos que ele está voltado para aquele em que Jesus entrega as chaves a São Pedro, considerado o primeiro papa, fundando ali a sua Igreja. Todos esses elementos nos levam a crer que a confecção desta pintura tinha como objetivo catequético a obediência e submissão às autoridades instituídas por Deus, tanto as eclesiásticas quanto as temporais, mas prinicpalmente o papado em si.

Para Rona Goffen, a figura de Moisés ora aparece como typus Christi, ora como typus papae e a associação entre os dois afrescos traz o typus primatus papae. Podemos ainda aproximar esse par de afrescos do par anterior, que apresenta Jesus como Legislador e Moisés como promulgador da lei escrita[7].

Maquiavel, em 1518, escrevia sobre a sabedoria e constancia do povo, se regulamentado pela lei[8]. Para o teórico, não há distinção entre Povo e Multidão. Pensando no espírito humanista do Quattrocento, presente na obra de Lippi, mestre de Botticelli, a obediência poderia aparecer como uma preocupação à Igreja. A apresentação de Moisés como líder nomeado por Deus e a menção à investidura do poder papal pelo próprio Cristo transmitem uma mensagem ao observador quanto à submissão. Podemos observar que os personagens não nomeados do afresco não se repetem nas três cenas da pintura, e que alguns aparecem trajados como a elite italiana do Quattrocento, outros com túnicas típicas de personagens hebreus e judeus da antiguidade. A multidão do afresco pode se identificar com os príncipes europeus, detentores do poder temporal, ou com o vulgo, todos interlocutores possíveis do afresco.

O potencial catequético da imagem se associa ao espaço da Capela Sistina, dentro da residência oficial dos Papas. Ao que parece, a multidão do afresco busca criar uma identificação entre os personagens punidos no episódio bíblico e o povo, a multidão do Quattrocento, numa preocupação papal com a autonomia do homem nas teorias e no pensamento do século.



Aline Cristina de Sá Rocha Ribeiro (IFCH-Unicamp)



Bibliografia

BENVENISTE, E. Le Vocabulaire des intitutions indo-europeenes, vol 2. Paris; Minuit, 1969.
BUSIGNANI, A. Botticelli. London; Thames and Hudson Ltd., 1968.
COVI, D. A. “Botticelli and Pope Sixtus IV” In The Burlington Magazine, Vol. 111, No. 799 (Oct., 1969).
DAVIDSON, F. KEVAN, E. F. STIBBS, A. M. O novo comentário da Bíblia. São Paulo; Ed. Vida Nova, 1954 [1963].
DOUGLAS, M. In the Wilderness. The Doctrine of Defilement in the Book of Numbers. Oxford; Oxford University Press, 2001.
GOFFEN, R. “Friar Sixtus IV and the Sistine Chapel” In Renaissance Quarterly, Vol. 39, No. 2 (Summer, 1986). Chicago; Universty of Chicago Press, pp 218-262.
HORNE,H. P. Alessandro Filipepi detto Sandro Botticelli : pittore in Firenze. Firenze. S.P.E.G., 1986-87, p 147.
MAQUIAVEL, N. Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio. São Paulo; Martins Fontes, 2007 [1518].
MAUSS, M. Sociologie et Antropologie. Paris; PUF, 2004.
Michelangelo and Raphael in the Vatican: with Botticelli, Perugino, Signorelli, Ghirlandaio and Rosselli : all the Sistine Chapel, the stanzas and the loggias. Vaticano; Museums and Papal Galleries, c1978.
MONFASANI, J. “A description of the Sistine Chapel Under Pope Sixtus IV” In Artibus et Historiae, vol 4, nº 7. IRSA s. c. (1983)
SOLER, J. Sacrifices et Interdits Alimentaires dans La Bible. Aux origines Du Dieu Unique t. 3, Paris, Hachette, 2004.

Fontes


Vulgata de São Jerônimo – http://www.latinvulgate.com/
Bíblia Sagrada, Ferreira de Almeida Revisada e Fiel - http://www.bibliaonline.com.br/

Notas

[1] Para mais sobre isso, cf. MONFASANI, J. “A description of the Sistine Chapel Under Pope Sixtus IV” In Artibus et Historiae, vol 4, nº 7. IRSA s. c. (1983).
[2] BUSIGNANI, A. Botticelli. London; Thames and Hudson Ltd., 1968, p 3.
[3] VASARI, G. Vida dos Pintores apud BUSIGNANI, A. Op. Cit.
[4] Para mais sobre o contrato de Botticelli pelo Vaticano, ver COVI, D. A. “Botticelli and Pope Sixtus IV” In The Burlington Magazine, Vol. 111, No. 799 (Oct., 1969), pp 616-617.
[5] HORNE,H. P. Alessandro Filipepi detto Sandro Botticelli : pittore in Firenze. Firenze : S.P.E.G., 1986-87, p 147.
[6] Cf. também Michelangelo and Raphael in the Vatican: with Botticelli, Perugino, Signorelli, Ghirlandaio and Rosselli : all the Sistine Chapel, the stanzas and the loggias. Vaticano; Museums and Papal Galleries, c1978.
[7] GOFFEN, R. “Friar Sixtus IV and the Sistine Chapel” In Renaissance Quarterly, Vol. 39, No. 2 (Summer, 1986). Chicago; Universty of Chicago Press, pp 218-262.
[8] MAQUIAVEL, N. Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio. São Paulo; Martins Fontes, 2007 [1518].


[9] Para mais sobre isso, cf. DOUGLAS, M. In the Wilderness. The Doctrine of Defilement in the Book of Numbers. Oxford; Oxford University Press, 2001.
[10] Para mais sobre isso, cf. SOLER, J. Sacrifices et Interdits Alimentaires dans La Bible. Aux origines Du Dieu Unique t. 3. Paris; Hachette, 2004.
[11] DOGLAS, M. Op. Cit., p. 90.
[12] DAVIDSON, F. KEVAN, E. F. STIBBS, A. M. O novo comentário da Bíblia. São Paulo; Ed. Vida Nova, 1963 [1954].
[13] BENVENISTE, E. Le Vocabulaire des institutions indo-europeenes, vol 2. Paris; Minuit, 1969.
[14] Cf. MAUSS, M. Sociologie et Antropologie. Paris; PUF, 2004.
Postagem Anterior Próxima Postagem

نموذج الاتصال