Análise da Obra Memórias de um Sargento de Milícias


A análise documental de algumas passagens da obra literária “Memórias de um Sargento de Milícias” tem por finalidade compreender a vida suburbana do Rio de Janeiro, os costumes, hábitos, referências musicais, instrumentos, descrição de danças, as modinhas mais populares, como sendo parte da história do Brasil. Enfim, parte do livro de Manuel Antônio de Almeida será tratado nesta análise como um documento histórico. Tal compreensão nos leva a um valor maior, a concepção de parte da História do Brasil.
Para conhecer um pouco sobre o documento que será analisado é indispensável falar sobre o autor, sobre a obra literária, a crítica literária, e, por fim, o que se pretende: a obra como um documento histórico.

O Autor

O autor de “Memórias de um Sargento de Milícias”, Manuel Antônio de Almeida nasceu no Rio de Janeiro em 1831 e faleceu em 1861, no litoral Fluminense. É filho de portugueses e ficou órfão aos dez anos. Teve uma infância simples o que o levou a escrever sobre os costumes da classe média baixa. Em sua formação chegou a estudar Belas-Artes e cursou Medicina até sua graduação em 1855, sem chegar a exercer a profissão. Atuou como revisor e redator no Correio Mercantil, onde publicou, sob a forma de folhetins, seu único romance: Memórias de um Sargento de Milícias (1852 – 1853), escrito com o pseudônimo de “Um Brasileiro”. Manuel Antônio de Almeida foi também diretor da Tipografia Nacional e Oficial da Secretaria do Ministério da Fazenda. Chegou a candidatar-se a deputado. Logo no início de sua carreira política, indo a caminho de realizar sua campanha eleitoral em Campos, morreu em um naufrágio do Vapor Hermes, nas costas do Rio de Janeiro na madrugada de 28 de janeiro de 1861.

A Obra

Seu único romance, Memórias de um Sargento de Milícias, publicado em 1852-53 sob a forma de folhetins, dentro do suplemento dominical A Pacotilha. Com um estilo peculiar, retratando a sociedade carioca da classe média baixa a qual conheceu desde sua infância. Diferente dos outros romances o herói na obra literária de Manuel Antônio de Almeida pode ser tido como um anti-herói, pois trata-se de Leonardinho, um homem sujeito as próprias necessidades, sem nobreza ou qualidades, é pobre, malicioso, sem idealização, vivendo da oportunidade e da sorte. A obra é contida de comicidade, humor parcial, linguagem coloquial e direta. Quanto aos personagens, são tipos sociais, caricaturas da sociedade carioca na época de D. João VI. Apresenta um contraste entre postura moral e amoral, ordem e desordem. A obra não possui linearidade devido a interrupções com comentários e explicações que quebram o enredo e simultaneamente criam um contato com o leitor com o uso da metalinguagem por parte do autor.
Por sua narração onisciente e descrição recorrente na obra em que aparece como observador, se aproximando muito do realismo, Manuel Antônio de Almeida foi considerado como um escritor de transição do romantismo para o realismo.
Curiosidades sobre a publicação: Até 1852, o Correio Mercantil aparecia aos domingos inteiramente em francês, a qual fora substituído pela A Pacotilha em prosa e verso. Em 27 de junho de 1852 no número 73 de A Pacotilha saiu as Memórias de um Sargento de Milícias. O autor publicou a obra em dois volumes: em 1854 o primeiro, em 1855 o segundo. Sua primeira tiragem foi pequena e sobraram exemplares. Desta primeira edição só se conhece um exemplar que está na Biblioteca Nacional, na coleção Ramos Paz.
Manuel Antônio de Almeida tem em sua obra a apresentação do primeiro anti-herói. Esta figura picaresca que aparecerá novamente em Macunaíma de Mário de Andrade, teve início na Espanha do século XVI na obra A Vida de Lazarillo de Tormes e reaparecendo no século seguinte em A Vida do Escudeiro de Marcos Obregón, de Vicente Espinel.

A Crítica

Por ser um romance peculiar, a crítica desviou de forma relevante um olhar para o tipo de obra que se publicou no Correio Mercantil.

“Não vou retomar a quase polêmica que se nota entre os críticos que se preocupam com a rotulação da obra: precursora do romance histórico do Romantismo, romance de costumes preso à tradição popular brasileira, derivada da novelística francesa dos séculos XVIII e XIX...”

Cecília de Lara se propôs a analisar apenas o contexto jornalístico no qual se inseriam as Memórias como folhetim e captar, na transposição, a realidade social e histórica do momento, junto com as implicações do público e das limitações na elaboração do texto do folhetim como matéria de jornal.

“A inexistência de separação gráfica entre o folhetim e a matéria de outra natureza, no jornal, impelia de certa forma à leitura de outros assuntos, além dos que motivassem mais de perto o leitor. Logo, o interesse pelo folhetim podia contribuir para a continuidade da leitura do suplemento e por sua vez a “Pacotilha”, em seu todo, captava a atenção de quem talvez não se interessasse habitualmente pela linha comercial do jornal o Correio Mercantil.”

A falta de separação quando diante da leitura do romance proporcionou uma aproximação maior dos fatos e da realidade instigando ainda mais o interesse do leitor.
É uma leitura de ficção, ainda que presa ao estilo do repórter que convivia com os fatos e que deles tirava o conteúdo para a obra. É também um paradoxo, pois a aproximação da realidade não excluiu a obra de ser um romance que tem entre suas características retratar os costumes e tipos humanos.
Para a crítica a classificação de uma obra (seja como romance, seja como uma obra pertencente ao realismo) é indispensável, pois esta definição revela o estilo e a ideologia do livro.
O que causa singularidade no romance Memórias de um sargento de Milícias é: o anti-herói (pícaro ou malandro), a falta do subjetivismo que foi substituído pela realidade externa, o humor que está muitas vezes relacionado à linguagem simples e direta, como também, a simplicidade dos personagens contrapondo a idealização que há no romantismo.
Antes de ser definido como uma obra romântica a crítica ficou dividida entre o romance romântico da segunda geração, realista ou precursor do realismo, realista arcaico, picaresco (por ver a sociedade de baixo para cima), machadiano avant La lettre (realismo à francesa). Chegando, por fim a definição de romance de transição para o realismo.

A Obra como um Documento Histórico

“O fato de ser este um livro de história literária implica a convicção de que o ponto de vista histórico é um dos modos legítimos de estudar literatura, pressupondo que as obras se articulam no tempo, de modo a se poder discernir uma certa determinação na maneira por questão produzidas e incorporadas ao patrimônio de uma civilização”

Enfim, tendo a obra Memórias de um Sargento de Milícias como um documento a ser analisado com a finalidade de captar parte da nossa história, é essencial voltarmos à época em que nasce o primeiro anti-herói da literatura brasileira.
Assim começa Manuel A. de Almeida o seu primeiro capítulo: “Era no Tempo do Rei”, trata-se de D. João VI. É época da chegada da família real. É época em que o Brasil inicia um processo em que deixará de ser Monarquia para se tornar República. E, historicamente falando, o que está em pauta neste momento entre os acadêmicos brasileiros é a Formação do Estado Brasileiro, a formação da identidade nacional, do nacionalismo. O que vem primeiro, o sentimento de nação, ou o Estado? Quem são, ou quem somos nós brasileiros? O que é o Brasil? Não vamos responder a pergunta que construía o debate entre os intelectuais naquela época e que se estende até os dias de hoje, mas os escritos de A Pacotilha nos ajudaram a compreender nestá época parte do processo de Formação do Estado Brasileiro. Os fragmentos que estão sobre a análise permitem conceber uma porção da herança colonial.
Historicamente, Sérgio Buarque de Holanda, em sua obra Raízes do Brasil compreende o Brasil como herdeiro de algumas características pertencentes aos portugueses: O espírito aventureiro dos Ibéricos que é resultante de um comportamento que visa um resultado à curto prazo, desorganizado e desestruturado, o que explica o desenvolvimento colonial no litoral sobre o trabalho escravo e da monocultura, assim como a desvalorização do trabalho.

“Também se compreende que a carência dessa moral do trabalho se ajustasse bem a uma reduzida capacidade de organização social. Efetivamente o esforço humilde, anônimo e desinteressado é agente poderoso da solidariedade dos interesses e, como tal, estimula a organização racional dos homens e sustenta a coesão entre eles. Onde prevaleça uma forma qualquer de moral do trabalho dificilmente faltará a ordem e a tranqüilidade entre os cidadãos, porque são necessárias, uma e outra, à harmonia dos interesses. O certo é que, entre espanhóis e portugueses, a moral do trabalho representou sempre fruto exótico. Não admira que fossem precárias, nessa gente, as idéias de solidariedade.”

Além da condição de aventureiro, entre outros apontamentos feitos por Sérgio Buarque de Holanda, há o personalismo. Está exaltação ao valor próprio leva a frouxidão dos laços sociais, dedica importância ao indivíduo autônomo, leva a repulsa ao trabalho manual e acabam tendo por valor o mando e a obediência.

“À autarquia do indivíduo, à exaltação extrema da personalidade, paixão fundamental e que não tolera compromissos, só pode haver uma alternativa: a renúncia a essa mesma personalidade em vista de um bem maior.”

No quinto capítulo da obra Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda aponta o homem cordial como sendo aquele que deseja uma aproximação do outro, aquele que quer encurtar distâncias no relacionamento, criar intimidade, que tem o afeto como prioridade, Porém isto não é bom, pois a cordialidade pode significar um sentimento disfarçado.

"Por meio de semelhante padronização das formas exteriores da cordialidade, que não precisam ser legítimas para se manifestarem, revela-se um decisivo triunfo do espírito sobre a vida. Armado dessa máscara, o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social. E, efetivamente, a polidez implica uma presença continua e soberana do indivíduo.”

Este capítulo “O Homem Cordial” começa dizendo que “O Estado não é uma ampliação do círculo familiar”. Sérgio Buarque de Holanda além de dizer o que é esta cordialidade que se manifesta nos brasileiros, explica ainda o modo como se alastra nas instituições brasileiras.

“Na análise de Sérgio Buarque, a cordialidade do povo brasileiro foi constantemente interpretada erradamente pela historiografia. Para o autor, o homem cordial seria aquele que atua, principalmente no espaço público, pela emoção e sentimentos do coração. É errôneo pensar a cordialidade como bondade e passividade, a cordialidade pode apresentar uma agressividade camuflada pela sutileza dessa concepção. Os laços de sangue que marcam essa bondade são determinados pela continuidade do espaço privado. Quando temos esse homem brasileiro inserido no espaço público, ele realiza um esforço intenso de resgate das relações familiares ou privadas e quando não for possível estabelecê-las, sua atuação no espaço público é marcada pela indiferença e violência.”

Enfim, após um breve levantamento de fragmentos deste ensaio que permitiu trazer para a análise trechos do que ainda é discutido pela academia a respeito de nossa história, o que se fará agora é identificar estes elementos na obra Memórias de um Sargento de Milícias. Sendo assim o que se procura identificar é o espírito aventureiro, o personalismo e a cordialidade.

“Ao sair do Tejo, estando a Maria encostada à borda do navio, o Leonardo fingiu que passava distraído por junto dela, e com o ferrado sapatão assentou-lhe uma valente pisadela no pé direito, A Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu-se como envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão esquerda.”

De uma pisadela e um beliscão nasce o primeiro pícaro brasileiro da nossa literatura e, também o primeiro romance que está mais próximo do realismo. Este fragmento dá início à análise do documento, pois estamos falando já do personagem principal: Leonardinho é filho de portugueses, é malandro, é ele quem permite ao leitor caminhar pelos subúrbios cariocas e conhecer as várias tramas que se desenvolvem ao mesmo tempo, logo é ele o responsável por atá-las, como em uma novela. O filho do homem que vale meia pataca fará o leitor rir com os contrastes dos subúrbios do Rio de Janeiro e a Corte, como também da ordem e a desordem, o que é moral e amoral.

“A princípio o Leonardo quis que a festa tivesse ares aristocráticos, e propôs que se dançasse o minuete da corte. Foi aceita a ideia, ainda que houvesse dificuldade em encontrarem-se pares. Afinal levantaram-se uma gorda e baixa matrona; uma companheira desta, cuja figura era a mais completa antítese da sua; um colega de Leonardo, miudinho, pequenino, e com fumaça de gaiato, e o Sacristão da Sé, sujeito alto, magro e com pretensões de elegante. O compadre foi quem tocou o minuete na rabeca; e o afilhadinho, deitado no colo da Maria, acompanhava cada arcada com um guincho e um esperneio. Isto fez com que o compadre perdesse muitas vezes o compasso, e fosse obrigado a recomeçar outras tantas.”

A comicidade, a desordem, o contraste já se fazem presentes no início do documento. As passagens mencionadas permitem ver de perto o cotidiano da vida da classe média baixa no Rio de Janeiro. Nesta passagem já é possível identificar a cordialidade presente até na linguagem no uso dos adjetivos: miudinho, afilhadinho para Leonardo que no decorrer da obra será chamado por Leonardinho.
“A terminação “inho”, aposta as palavras, serve para nos familiarizar mais com as pessoas ou os objetos e, ao mesmo tempo, para lhes dar relevo.”

A cordialidade reaparece no desenrolar do romance quando Leonardinho é nomeado a Sargento de Milícias. Este só é nomeado devido a ajuda do major Vidigal que nutria interesse por Maria-Regalada que cederia aos desejos do major caso este concedesse seu pedido.

“O segredo que a Maria-Regalada dissera ao ouvido do major no dia em que fora, acompanhada por D. Maria e a comadre, pedir pelo Leonardo, foi a promessa de que, se fosse servida, cumpriria o gosto do major. Está pois explicada a benevolência deste para com o Leonardo, que fora ao ponto de não só disfarçar e obter perdão de todas as suas faltas, como de alcançar-lhe aquele rápido acesso de posto. Fica também explicada a presença do major em casa da Maria-Regalada. Depois disto entraram todos em conferência. O major desta vez achou o pedido muito justo, em conseqüência do fim que se tinha em vista. Com a sua influência tudo alcançou; e em uma semana entregou ao Leonardo dois papéis: — um era a sua baixa de tropa de linha; outro, sua nomeação de Sargento de Milícias.”

Mais claro fica a neste fragmento a extensão dos vínculos que se dão nos relacionamentos corriqueiros do dia-a-dia para as instituições privadas ou públicas. A cordialidade aparece na obra desde o seu início até o seu término.
O espírito aventureiro que aspira ao resultado fácil e rápido pode ser encontrado, também no começo da obra com Leonardo-Pataca. O personagem que chega ao Brasil vindo de Portugal (pai de Leonardinho) é um sujeito preguiçoso que cobra (uma espécie de “pedágio”) a cada um que passe por ele.

“[...]e ninguém passava sem que lhes tivesse deixado, não um óbolo, porém todo o conteúdo de suas algibeiras, e até a última parcela de sua paciência. [...] era o Leonardo-Pataca. Chamavam assim a uma rotunda e gordíssima personagem de cabelos brancos e carão avermelhado, que era o decano da corporação, o mais antigo dos meirinhos que viviam nesse tempo. A velhice tinha-o tornado moleirão e pachorrento; com sua vagareza atrasava o negócio das partes; não o procuravam; e por isso jamais saía da esquina; passava ali os dias sentado na sua cadeira, com as pernas estendidas e o queixo apoiado sobre uma grossa bengala, que depois dos cinqüenta era a sua infalível companhia. Do hábito que tinha de queixar-se a todo o instante de que só pagassem por sua citação a módica quantia de 320 réis, lhe viera o apelido que juntavam ao seu nome.”

A primeira malandragem é dada como sinal do espírito aventureiro já na segunda página do romance, o óbolo (dinheiro, esmola, pataca) simbolizando este jeitinho trazido de Portugal por Leonardo e que será o jeitinho brasileiro de Leonardinho, o primeiro pícaro da literatura brasileira. Ainda neste trecho percebe-se uma manifestação do personalismo nas características de Leonardo-Pataca (a sua preguiça, a sua aversão ao trabalho).

Por fim, o personalismo, o espírito aventureiro, a cordialidade identificada na obra não são apenas partes do livro de Manuel Antônio de Almeida que visam embasar o conhecimento histórico resultante das discussões entre intelectuais. O autor faz menções constantes às origens portuguesas através dos fatos e personagens em sua obra. Tomando como exemplo do personalismo, a pompa que exibe o cargo de meirinho não faz jus ao seu posto, ou seja, este cargo não representava a aparência e o respeito que lhe era dedicado. Assim como a aversão ao trabalho que é fruto da figura do Português desbravador em seu espírito aventureiro e o tratamento íntimo decorrente na obra que é tão comum ao povo português e ao romance. Sendo assim os elementos identificados constitui intrinsecamente o corpo de toda a obra tratada aqui como um documento de valor histórico.

Bibliografia
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ALMEIDA. Manuel Antônio de. Memórias de um Sargento de Milícias. 17.ed. São Paulo, SP: Ática, 1990. 136p

2 Comentários

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  2. A data de publicação está errada, não foi em 1852-53, e sim em 1854-55.

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